Apresentamos o texto de Oscar Cirino, como uma abertura dos nossos trabalhos de 2024, com a fala de uma de nossas revisoras… “Mostra a prática do trabalho clínico… Deixa um desejo de saber mais sobre este ou outro caso… Continuar a discussão sobre realidade e ideação paranoide”. O texto de Oscar é primoroso! Leia e escreva seu comentário!
Em ampla escala, a associação entre violência e drogadição – proibição, narcotráfico, corrupção e repressão – está bem estabelecida, política, econômica e socialmente, ao menos desde que a chamada “Guerra às Drogas” (na verdade guerra a determinados usuários e culturas) foi declarada por Richard Nixon, então presidente dos EUA, em 1971, e a onda proibicionista se espalhou pelo globo. Como, no entanto, pensá-la no âmbito da clínica na atenção psicossocial?
Sabemos que, independentemente da natureza do efeito de determinada substância sobre o sistema nervoso central, os momentos de intoxicação, fissura e abstinência são cruciais no advento de comportamentos agressivos (insultar, atropelar, roubar, entre outros que atentam contra a própria pessoa, tais como prostituir-se, suicidar-se etc.) observados em drogaditos, pois estão associados, além de aos aspectos subjetivos, ao rebaixamento da crítica, à impulsividade, à irritabilidade, à redução da sensibilidade à dor e até mesmo a fenômenos alucinatórios.
Para um jovem de 16 anos, atendido certa vez em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas - CAPSad de Belo Horizonte, fumar nove baseados por dia era, pelo contrário, “um remédio” para acalmar as vozes que perturbavam sua cabeça: função que desfaz aquele laço imediato entre drogadição e violência. Já os hippies, nos anos 1960, inebriados pela maconha e pela Dietilamida do Ácido Lisérgico - LSD, protestavam contra a Guerra do Vietnã, praticavam meditação zen-budista e pregavam “Paz e Amor”.
Em todo caso, não podemos nos esquecer, conforme nos ensinou Freud em O mal-estar na cultura (1930), que o recurso à droga, enquanto “anestésico” imediato para o sofrimento (sofrimento que, em última instância, é sensação experimentada em nosso corpo), é demasiado arriscado, na medida em que dispensa o sujeito do trabalho de elaboração psíquica sobre seu mal-estar. Afinal, onde o usuário busca, reiteradamente, refúgio e fruição, pode encontrar – tiro no próprio pé – a compulsão, a submissão ao objeto. Assim é que algo que inicialmente se apresenta como um remédio, uma solução, pode se transformar – segundo a dose e a frequência com que a ele se recorre – em um veneno: ambivalência do termo grego pharmakon, resgatada por Jacques Derrida em A farmácia de Platão (1968).
REALIDADE OU IDEAÇÃO PARANOIDE?
Do fragmento clínico a seguir, depreendem-se algumas dificuldades de elaboração de um diagnóstico e de uma proposta de atenção psicossocial no contexto socioeconômico brasileiro, historicamente marcado pela desigualdade social e pela violência.
Um jovem de 20 anos, ensino fundamental incompleto (ele interrompeu os estudos na 8ª série, mesma época em que começou a inalar cola e fumar maconha), comparece ao acolhimento do CAPSad, com encaminhamento do médico de uma Unidade Básica de Saúde, no qual consta: “Toxicomania, ideias persecutórias, insônia”. Havia sido também prescrito um ansiolítico.
Ele está “com cisma” de seu passado – já testemunhou ameaças e assassinatos – e recorda que tem um primo na prisão: “Ele ameaçou matar uma pessoa que eu conheço. Eu avisei a ela e agora tenho medo do que ele possa fazer comigo. Já vi muitas coisas bárbaras na vida”. O jovem não gosta de se lembrar nem falar sobre isso: “Quando eu usava droga, não tinha essa cisma toda” (ao que parece, a droga funcionava, em seu caso, como um recurso para tratar o real que ele não alcançava circunscrever simbolicamente.)
Queixa-se de vertigem e lapsos de memória, mas, quando indagado, lembra-se que abandonou os inalantes quando começou a cheirar cocaína; e que foi devido a uma briga no bairro que se mudou da casa da mãe para a casa da irmã, em outra região de Belo Horizonte. No acolhimento inicial, demos-lhe explicações sobre as alternativas de tratamento oferecidas pelo CAPSad e agendamos seu retorno para daí a quatro dias, ao qual comparece dizendo-se “mais tranquilo”. Não iria, contudo, seguir no acompanhamento do serviço, justificando, de modo pouco convincente, que preferia usar o dinheiro que gastaria na condução até o CAPSad para frequentar aulas em uma moto-escola.
Certamente, seria necessário mais tempo para esclarecer o tipo clínico em questão neste caso, pois as “cismas” do jovem (sobre as quais ele tinha dificuldade de falar e que as drogas amenizavam) não poderiam estar relacionadas – mais do que com uma possível psicose – com o insuportável, o traumático das “coisas bárbaras” que ele testemunhou?
REFERÊNCIAS:
Derrida, J. (2005). A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras.
Freud, S. (1930). O mal-estar na cultura. In: Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos (pp. 305-410). Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
SOBRE O AUTOR:
Oscar Cirino: Psicanalista, Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Trabalhou durante 17 anos no Centro Mineiro de Toxicomania (credenciado como CAPSad III). Professor convidado em cursos de pós-graduação lato sensu em diferentes cidades do Brasil. Autor dos livros Psicanálise e Psiquiatria com crianças: desenvolvimento ou estrutura (Editora Autêntica) e Psicanálise, drogadição e atenção psicossocial (Editora Appris).
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