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Foto do escritorAntonio Nery Filho

UM NOVO TEMPO?


Imagem: Documentário Quebrando o Tabu.


Faz algum tempo não posto um texto neste blog. Acho que meu silêncio tem a ver com “um tempo para reflexão”. Faz algum tempo escrevi que havia sido tomado por um grande desânimo diante do que me parecia ser um discurso alarmista e pouco sustentado cientificamente, sobre o crack. Saindo de minha natação semanal fui abordado por um segurança nestes termos “é doutor, o crack é um problema…”. Até chegar em casa pensei : de onde saiu esta idéia? O que esse senhor tem lido que eu desconheço, será que ouve noticiários que me são inacessíveis? Ou será que repete o que lhe é dito todo dia pelos telejornais e que acaba ganhando contornos de absoluta verdade? Não há um santo dia ou mesmo uma santa hora (como diria o Robin, parceiro do Batman), sem alguma notícia sobre droga, algum bandido preso depois de assaltar e matar alguém, movido por outra droga, um delegado afirmando que as drogas estão aumentando na comunidade e, finalmente alguma coisa sobre a vedete destronada – o crack, e a vedete mais recente , destronadora – o oxi, ambas a mesma coisa, apenas com roupas (solventes) diferentes. Como não silenciar diante disto tudo e refletir: será verdade que as drogas, produtos químicos inertes, insensíveis à dor, incapazes de amar, incapazes de rir ou de chorar, rígidas, duras em suas conformações minerais (ou vegetais), são as responsáveis por todo o mal, por todas as misérias do mundo, no dizer de Bourdieu? Fico perplexo diante da ausência na mídia de referência às pessoas, seres humanos, Antonios, Pedros, Ronaldos, Marias, Madalenas e todos os nomes que inventamos ou copiamos para designar cada um em sua singularidade coletiva. Mesmo quando a mídia ou a polícia se refere a “um elemento”, para dizer de alguém que fracassou ou nasceu fracassado, ou se criou no fracasso ou que não teve oportunidade de ser outra coisa, o “elemento” vem, imediatamente, associado a uma droga. “Foi por causa dela”, dirão, para explicar o delito, como se a droga tivesse um corpo que seduz e uma alma para penar nas profundezas do inferno depois do julgamento. A parte humana dos humanos tem sido sistematicamente substituída pela parte não humana das drogas. Contudo, nos últimos dias o impossível que se anunciava aconteceu: o Ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso protagonizou um documentário (Quebrando o Tabu) que nos encheu de esperança – a guerra às drogas não serviu para os consumidores; a guerra às drogas serviu aos traficantes; os usuários não são bandidos; droga é uma questão de saúde e de informação mais do que de repressão cega e indiscriminada. O Presidente convoca a sociedade brasileira para uma mudança de paradigma. Droga não é coisa de bandido é coisa de humanos. Qual a novidade nisto? Nenhuma. Claude Olievenstein disse isto nos anos setenta em Paris. Luis Patrício em Portugal. Não é o mesmo quando mortais dizem coisas sobre mortais, salvo quando se trata de tragédias. A novidade agora consiste na coragem de um homem público, culto e inteligente, reconhecido no Brasil e pelo mundo, de assumir que não estava bem informado ou estava impossibilitado de retirar a venda dos olhos, disposto a assumir o custo social que a ignorância ou simplesmente a má fé vão cobrar-lhe. Acho que é chegado um tempo de esperança para usuários, familiares e profissionais que não temem as drogas nem se beneficiam com elas. Não se trata de promover as drogas mas de outro tempo, um tempo no qual a violência econômica e a violência física tenham sido deixadas para trás com a ilegalidade. Nós da saúde cuidaremos dos usuários e seus males, físicos e psíquicos, próprios dos humanos sem estigmatizações nem preconceitos. E isto não é pouco. Só humano, “demasiado humano”.



 

Texto originalmente publicado em 08 de junho de 2011. Disponível em: <https://conversandocomnery.wordpress.com/2011/06/08/um-novo-tempo/>.

 

SOBRE O AUTOR:


Antonio Nery Filho: Antônio Nery Filho: Psiquiatra, Graduado em Medicina e Mestre em Medicina e Saúde pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA); e Doutor em Sociologia e Ciências Sociais pela Universidade Lumière Lyon 2 (França).

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