Gabriel Silva nos apresenta, através de uma pesquisa, a observação do excesso de medicalização por psicofármacos nas populações indígenas e quilombolas. Chama a atenção para o fato de que “a medicalização da vida não seja a política de saúde…”. Leia e comente este interessante texto em nosso Blog!
Psicofármacos são uma classe de substâncias que agem no sistema nervoso central e alteram estados de cognição e comportamento, foram descobertos na segunda metade do século XX e, desde então, têm sido utilizados para o tratamento de transtornos mentais (Ferrazza et al., 2010). Hoje, estudos revelam um alto índice de prescrição desses medicamentos, aumento que vem crescendo desde os últimos anos (Conselho Federal de Farmácia, 2023). Porém, como se dá o consumo dessas substâncias de fins terapêuticos por povos tradicionais no Brasil?
O tema que escolhi trazer para o presente texto diz respeito às problemáticas em torno do uso de psicofármacos no Brasil, mais especificamente por povos tradicionais. Como estudante de psicologia e membro do Centro de Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Outras Drogas (CREPEIA), o assunto me despertou interesse ao participar da pesquisa intitulada “O Consumo de Psicofármacos em Populações Indígenas e Quilombolas: um estudo descritivo”. A pesquisa consistiu em uma ramificação do projeto de pesquisa guarda-chuva: “Saúde Mental e Povos Tradicionais: desenvolvimento de tecnologias de detecção, análise e atenção para populações vulneráveis de difícil acesso”, e foi realizada em quatro estados brasileiros, com a parceria de seis instituições universitárias.
O aumento do consumo de psicofármacos e dos surgimentos de transtornos mentais tem se tornado uma preocupação global no âmbito da saúde pública, configurando a saúde mental como um dos principais desafios das políticas de saúde (Brauer et al., 2021). No Brasil, o cenário não é diferente: o país segue com crescente aumento em diagnósticos de transtornos mentais e em consumo de psicofármacos (João Dall’ara, 2023). Apesar dos dados preocupantes, há dificuldades metodológicas de generalizá-los para os povos indígenas e quilombolas, uma vez que o Brasil enfrenta um processo de precarização da saúde pública, resultando em dificuldades de alcançar essa parcela da população.
Observa-se, na literatura, não apenas a ausência de dados sociodemográficos básicos dessas populações para a construção de políticas públicas, mas também a ausência de dados relacionados à saúde (Batista & Zanello, 2016). Logo, as pesquisas que revelam as condições de saúde mental desses povos são escassas, bem como os dados que registram de alguma forma o consumo de psicofármacos. São vários os motivos que levam a essa escassez de informações, mas destacarei aqui os que julgo serem os principais: a histórica negligência do Estado brasileiro frente a garantia de direitos dos povos tradicionais, e as dificuldades enfrentadas pela Atenção Primária à Saúde (APS) em promover a saúde dessas populações.
Historicamente, o Brasil é um país marcado pela escravidão tanto de povos africanos trazidos para o país, quanto de povos originários do próprio território brasileiro. A exploração da mão de obra forçada é um dos alicerces que, até hoje, de uma certa maneira, sustentam o país (Carnevalli et al., 2023). Somado a isso, a falta de representatividade desses povos no âmbito político, o racismo vivenciado por eles, e a recusa da sociedade em aceitar os modos de vida dos povos tradicionais que são alternativos ao modo consumista-capitalista, contribuem para o apagamento desses povos, de suas histórias, tradições e costumes. Consequentemente, os direitos fundamentais garantidos pela constituição parecem não se aplicar a esses povos, as constantes lutas dos povos indígenas e quilombolas por territórios, direitos e reconhecimentos ilustram essa negligência.
Paralelo a isso, o Sistema Único de Saúde (SUS) é uma das poucas políticas públicas que garante o acesso à saúde para toda a população, em todo o território nacional. A APS detém a tarefa de prevenir e promover a saúde de forma coletiva, partindo de uma visão sistemática do sujeito, onde cultura, história, trabalho, renda, etnia, gênero e raça são fatores importantes para projetos preventivos e promotores de saúde (Figueredo et al., 2019). Além disso, a Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF) garante ao usuário acesso a medicamentos por meio da APS, uma vez que consegue se fazer presente em lugares de difícil acesso, sendo a porta de entrada do usuário no SUS. No entanto, na prática, na esfera do cuidado ao sujeito, essa política que se apresenta como forma de cuidado pode, por vezes, se revelar uma forma de controle, caso os profissionais que a executam não sejam devidamente capacitados.
A pesquisa da qual fiz parte vai ao encontro desse argumento, apresentando dados sobre o consumo de psicofármacos em algumas comunidades indígenas e quilombolas, com o objetivo de sanar parte da lacuna presente na literatura. Como resultado, 15,8% da população pesquisada consumiam pelo menos um psicofármaco pertencente a uma das seis classes de medicamentos encontradas.: ansiolíticos, antidepressivos, antipsicóticos, antiepiléticos, hipnóticos/sedativos e estabilizadores de humor.
A discussão em torno do excesso do uso de psicofármacos se situa, a meu ver, em uma discussão mais ampla sobre a delicada relação entre drogas e sociedade. Ainda que os psicofármacos integrem uma classe de drogas apresentadas como terapêuticas, fora do uso racional, isto é, o consumo da medicação correta, com a dose adequada e horários apropriados, elas podem se tornar problemáticas, piorando o sofrimento vivenciado pelo sujeito e, em alguns casos, causando dependência (Ferrazza et al., 2010). O uso racional de psicofármacos é um dos maiores desafios do cuidado na APS, pois muitas vezes os aspectos psicossociais dos sujeitos não são levados em consideração na construção desse cuidado, resultando na medicalização da vida cotidiana.
Nesse sentido, o alto índice do uso de psicofármacos com receita médica (92,5%), a alta frequência de não acompanhamento periódico com o médico que receitou (43,4%), somados à falta de ofertas de estrategias de cuidado alternativas aos psicofármacos (26,4%), compõem alguns dos resultados da pesquisa que se destacam. Além disso, refletem a ênfase dada aos psicofármacos no campo da saúde mental, a não construção de práticas de cuidados consoantes aos saberes tradicionais desses povos e a falta de monitoramento sobre a forma de consumo da medicação.
Por fim, para que a medicalização da vida não seja a política de saúde voltada para os povos tradicionais, ressalta-se a importância da valorização dos saberes populares na construção do cuidado em saúde mental e da politização desse cuidado, sendo evidente as vulnerabilidades e especificidades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Batista, M. Q., & Zanello, V. (2016). Saúde mental em contextos indígenas: Escassez de pesquisas brasileiras, invisibilidade das diferenças. Estudos de Psicologia, 21(4), 403-414. https://doi.org/10.5935/1678-4669.20160039
Brauer, R., Alfageh, B., Blais, J. E., Chan, E. W., Chui, C. S. L., Hayes, J. F., Man, K. K. C., Lau, W. C. Y., Yan, V. K. C., Beykloo, M. Y., Wang, Z., Wei, L., & Wong, I. C. K. (2021). Psychotropic medicine consumption in 65 countries and regions, 2008–19: a longitudinal study. The Lancet Psychiatry, 8(12), 1071–1082. https://doi.org/10.1016/s2215-0366(21)00292-3
Conselho Federal de Farmácia, (2023, 16 de março). Vendas de medicamentos psiquiátricos disparam na pandemia. Retirado de: https://site.cff.org.br/noticia/noticias-do-cff/16/03/2023/vendas-de-medicamentos-psiquiatricos-disparam-na-pandemia#:~:text=Levantamento%20feito%20pelo%20Conselho%20Federal,da%20pandemia%20de%20Covid%2D19
Carnevalli, F., Regaldo, F., Lobato, P., Marquez, R., & Wellington Cançado. (2023). Terra: Antologia Afro-Indígena. Ubu Editora.
Dall’ara, J. (2023, 13 de janeiro). Busca por medicamentos para a saúde mental cresce a cada ano no Brasil. Jornal da USP. Retirado de: https://jornal.usp.br/atualidades/busca-por-medicamentos-para-a-saude-mental-cresce-a-cada-ano-no-brasil/
Ferrazza, D. A., Luzio, C. A., Rocha, L. C., Sanches, R. R. (2010). A banalização da prescrição de psicofármacos em um ambulatório de saúde mental. Paidéia, 20(47), 381-390. https://doi.org/10.1590/S0103-863X2010000300010
Figueredo, D. S., Heidemann, I. T. S. B., Fernandes, G. C. M., Arakawa-Belaunde, A. M., Oliveira, L. S. de, & Magagnin, A. B. (2019). Promoção da saúde articulada aos determinantes sociais: possibilidade para a equidade. Revista de Enfermagem UFPE on Line, 13(4), 943–951. https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/239123/31771
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