Espelho, espelho meu... Fiz dieta por dias... Me diga agora: estou mais magra?
Sobre essa preocupação exagerada é que a psicanalista Luciana Saddi escreve para nós "Mentalidade de dieta e Psicanálise".
Vamos saborear este texto e comentá-lo no nosso blog.
A relação com a comida passou por significativa perturbação nas últimas décadas. Comemos, cada vez mais, de forma “externalizada”, e o complexo trabalho de comer tem ficado ao encargo das dietas. As dietas fazem parecer simples, algo bastante intricado, reduzem e empobrecem o que o ato de comer exige de cada um de nós. Prejudicam e interferem na fina conexão sujeito/corpo/mundo tão necessária à percepção e ao atendimento do fluxo de necessidades e desejos que nos habitam. Na prática, é como se as dietas expulsassem o corpo, e seus inúmeros sinais, do homem. Sob essa perspectiva o comer se tornou desconectado dos sinais de fome e saciedade que deveriam regulá-lo. Perdemos capacidades como saborear os alimentos, saber quando parar de comer, quando se tem fome, escolher os alimentos por livre e espontânea vontade (e com prazer) para os momentos de fome. O comer se tornou, cada vez mais, intermediado por informações científicas ou midiáticas que procuram impor padrões disciplinadores (e modismos) sem levar em conta a diversidade e a singularidade das pessoas, de seus apetites e paladares, além de interesses econômicos e questões culturais.
O mal-estar que acompanha a experiência com a alimentação e com o corpo é chamado de mentalidade de dieta. Decorre do controle social ampliado e capilarizado que multiplica ingerências sobre o cotidiano mais elementar e estabelece ideais impossiveis de alcançar, e resultam em alienação e sofrimento.
A mentalidade da dieta achata a realidade e impõe certa resistência ao questioná-la, pois abriga a crença que só existe uma forma possível de ser, somente um tipo de corpo pode ser considerado belo e todas as formas de comer estão erradas.
O aumento dos problemas alimentares e do sofrimento com o comer e com o corpo na clínica psicanalítica, nos últimos 30 anos, está diretamente relacionado ao crescimento e capilarização da mentalidade de dieta. Quase sempre os transtornos alimentares se iniciam e coincidem com práticas de dieta e privação alimentar. Contra o comer perturbado é essencial resgatar os sinais de fome e saciedade, o prazer de comer, a escolha autônoma dos alimentos para cada momento de fome. Sensibilizar o paladar, conectar-se com a própria digestão, escutar o ritmo do corpo. Comer guiado pelos sinais internos, em profunda conexão consigo mesmo, diminui a perturbação do comer. Conectar-se às próprias emoções, com um vasto mundo interno que, em geral, não é percebido, significa realizar trabalho de autonomia pessoal, com a vantagem de reduzir os episódios de compulsão, aumentar o autoconhecimento e diminuir a insensata e inútil luta contra si mesmo.
É trabalhoso sair de um processo de alienação. Dietas frustradas, ganhos de peso excessivos, episódios de compulsão desagradáveis se acumulam na memória, se entranham na autoestima e imprimem marca de autodesvalorização e incompetência. E, por fim, se estabelece círculo vicioso marcado por mal-estar permanente com o corpo e comida.
Dos inúmeros males causados pela mentalidade de dieta, o constante ódio voltado contra si e contra o próprio corpo talvez seja o sintoma mais calado entre nós. Revestido de preocupações estéticas, de considerações sobre a saúde e não se revela facilmente. Capturado pela gordofobia e somado aos preconceitos, deprime ainda mais os indivíduos que se sentem fora dos padrões.
A experiência clínica ensina que engordar ou emagrecer pode estar ligado à necessidade de se esconder, se omitir e delegar ao corpo tarefa que ainda não pode ser consolidada pelo Eu. O corpo e forma, transmitem simbolicamente sinais que não foram processados e sequer compreendidos. Os médicos e profissionais de saúde estão tão preocupados em engordar ou emagrecer pessoas que não se perguntam qual a função desses sintomas na economia psíquica dos sujeitos. Considero que há grande interesse em mantê-los. Significam proteção contra a sexualidade e contra investidas sexuais. Também remetem à melancolia, aos “pesos mortos” carregados vida a fora. Trazem o signo do protesto contra o establishment, contra o controle dos corpos exercido por mães, famílias e sociedade. Os significados da gordura e da magreza, do comer excessivo e da fobia à gordura precisam ser melhor conhecidos e investigados na clínica. O sofrimentos psíquicos se escondem sob problemáticas concretas, por vezes obsessivas, com o peso, seleção de comidas e contorno corporal. Se apresentam sob as mais diversas vestes. Entretanto, à medida que o trabalho analítico evolui, os sofrimentos se deslocam da concretude do peso e formas corporais para questões emocionais complexas, que se somam, e demandam a criação de recursos psíquicos para serem enfrentados.
Nos anos 70 do século 20, a psicanalista Susie Orbach contribuiu com obra fundamental para compreensão da gordura, controle social do corpo e tratamento da compulsão alimentar, o título contundente, Gordura é uma questão feminista, permanece absolutamente atual. A psicanálise, munida de pensamento crítico, ainda tem muito a conhecer e explorar no campo dos problemas alimentares.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Herrmann, F., & Minerbo, M. (1998). Creme e Castigo – sobre a migração dos valores morais da sexualidade à comida. In I. Carone, Psicanálise fim século (pp. 19-36). São Paulo: Hacker.
Hermann, F. (2004). Apesar dos pesares. Texto inédito apresentado como conferência na SBPSP.
Herrmann, F. (2003). Adição à adição. Texto inédito apresentado como conferência na I Jornada PROMUD.
Orbach, S. (1978). Fat Is a Feminist Issue. New York: Paddington Press.
Orbach, S. (1986). Hunger Strike. New York: Norton.
Orbach, S. (2000). A impossibilidade do sexo. Rio de Janeiro: Imago.
Saddi Mennucci, L. (2007). No campo dos problemas alimentares: uma técnica de tratamento psicanalítica. Dissertação de mestrado, Psicologia Clínica, PUC-SP, São Paulo.
Saddi Mennucci, L. (2013). Duas formas de psicanálise e um caso clínico. Jornal de Psicanálise, 46(84), 153-168.
SOBRE A AUTORA:
Luciana Saddi: Psicanalista e escritora. Membro efetiva e Docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autora de "Educação para a Morte" (Ed. Patuá); e coautora de "Alcoolismo - o que fazer?" (Ed. Blucher) e "Maconha: os diversos aspectos, da história ao uso". Fundadora do Grupo Corpo e Cultura. Coordenadora do Programa de Cinema e Psicanálise da Diretoria de Cultura e Comunidade da SBPSP em Parceria com o MIS e Folha de São Paulo.
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