No texto ”MATERNIDADE UMA PORTA ABERTA PARA O ABANDONO DE MULHERES USUÁRIAS DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS”, Laurene nos conta o caso de Maria e André. Da precariedade e vulnerabilidades da vida de Maria e André, as equipes de consultório de rua e da própria maternidade Interlagos ajudam no resgate da identidade e da formação dessa nova família, onde nasce Pedro. É a energia vital do trabalho das equipes que está ali presente. Leiam o texto, façam suas observações! Temos vida para oferecer aos vulnerados!
“Quando, seu moço, nasceu meu rebento, não era momento dele rebentar. Já foi nascendo com cara de fome, e eu nem tinha para lhe dar...”
(Meu Guri: Chico Buarque de Holanda, 1981)
Trabalhando há muitos anos como Assistente Social em maternidade pública, no extremo sul de São Paulo, tenho observado e atendido muitas mulheres vulneradas, grávidas, usuárias de substância psicoativas (SPA) e em situação de rua. Minha experiência permite afirmar quão difícil é para estas mulheres lidar com gravidez, habitando as ruas: a insuficiência de acolhimento no atendimento desde o pré-natal, passando pelo parto e as questões de tutela de seus filhos. Ficar com o filho não é para estas uma escolha, embora o desejo seja latente, é uma imposição do sistema a estas mulheres, que, na maioria dos casos, vão embora, retornam à rua e ficam sem as suas crianças. Através do acolhimento institucional, nas tentativas de deixar estes filhos junto à rede familiar dessas mulheres, é um desafio das equipes nas maternidades. Diante de repetidas gestações, laços rompidos, os familiares não possuem condições psicossociais e econômicas de manutenção destas crianças.
O trabalho em rede interativa é sem dúvida uma grande oportunidade para nós, profissionais da saúde, para proporcionar apoio a estas mulheres. O consultório na rua, composto por equipe especializada neste atendimento, auxilia a impulsionar uma melhoria nesta atenção, embora muito haja que se construir, principalmente em relação ao preconceito e insegurança na maternagem. Sensibilizar estas mulheres a saída da rua, para acompanhamento e tratamento são questões que merecem ser vistas e repensadas. Quando se encontra serviços que oferecem abrigo, as vagas são limitadas e nem sempre atendem as necessidades destas mulheres.
Abrindo as portas para a rede, a Maternidade tem oportunizado encontro bimestral no Fórum Materno Infantil, onde conseguimos pactuar e organizar a assistência com a rede de atenção, referenciada do hospital. E é neste cenário, que este convite para reflexão deste atendimento se inicia. No trabalho em rede com as equipes da atenção na rua, que trago o êxito da história destas vidas. Sem o envolvimento e determinação dos profissionais envolvidos não chegaríamos ao melhor desfecho.
De um modo geral, recebemos as gestantes em uso de SPA, sempre sozinhas, trazidas pelo serviço de assistência e urgência. Algumas vezes o parto já ocorreu em via pública.
Neste atendimento, recebo a equipe do Consultório na Rua, da zona sul, trazendo um casal em situação de rua, em uso de SPA. Ambos em condições de higiene precárias, descalços, absolutamente perdidos, bastante fragilizados. Ela com 39 de semanas de gestação e em trabalho de parto, ele muito preocupado e desconfortável diante dos outros pacientes. Ela determinada a ficar com o filho. Seu pedido? “Por favor, fui abandonada e vivi minha vida em abrigo. Não quero isto para o meu filho” [sic]. A equipe de atendimento na rua traz relato da atenção a gestação de “Maria” (nome fictício), e a disposição para concretizar o pedido dela. O companheiro de “Maria”, chamado aqui de “André”, incomodado com a atenção a sua aparência, solicita a possibilidade de um banho e roupas limpas.
Embora com experiência nesse atendimento, de certa forma, me chamou a atenção, quando “André” solicitou um pedido de ajuda. Providenciamos um banho para André, roupas limpas e calçados.
As roupas usadas foram deixadas no banheiro, perguntei se queria levá-las, ao que ele me respondeu: “Isso é passado doutora, agora vai ser diferente”.
Converso então com a médica da equipe na rua, acompanhando o casal, fez o pré-natal de “Maria” na rua, além do Assistente Social da mesma equipe, que acompanharam “Maria” e “André”. Pactuamos então o atendimento, inteirei sobre as normas, protocolos e regras hospitalares da Maternidade.
A equipe propõe que fizéssemos uma tentativa de alta segura, nos apoiando enquanto equipe na alta de “Maria” e da sua criança. Foi realizada com empenho, pela equipe junto ao Ministério Público (MP), a saída da maternidade para um abrigo do casal com o bebê.
Muitos receios passaram pela minha cabeça. Mas me perdoem, embora meu desejo seja sempre a alta de mãe com filho, ficamos apreensivos diante de propostas desafiadoras e inovadoras de escuta e acolhimento, em decorrência de questões de politicas públicas e pelos instrumentos oferecidos nem sempre nos inspirarem confiança. E, acima de tudo, preocupa-nos a segurança da criança.
“Maria” deu a luz a um menino saudável, de 3,400g. “Pedro” nasceu de parto normal. Chegou com um choro forte e faminto. É preciso ressaltar que, durante a gestação, “Maria”, conseguiu evitar o uso de SPA, porém na noite anterior ao nascimento teve uma recaída. “Pedro” foi registrado no hospital, e a equipe de profissionais na rua conseguiu providenciar os documentos do casal, que os havia perdido. A perda de documentos é realidade presente entre as pessoas que vivem em situação de rua. Isso muitas vezes é um grande entrave para o acolhimento desta população. Foi muito importante este acolhimento e receptividade da equipe toda para que nada dificultasse a transformação de vida deste casal, agora pais de “Pedro”.
A alegria de ambos era visível. Nas nossas tratativas estávamos acertados de que tentaríamos a alta da família.
“André” não escondia sua felicidade. No refeitório, almoçando, me agradeceu: “Nunca podia imaginar um dia estar comendo um prato de comida com gente tão importante” [sic], disse “André” chorando. Ele possuía uma história difícil e triste. Entretanto, seu desejo de construir uma vida diferente com dignidade estava explícito.
A vaga no abrigo saiu, a alta foi realizada, e eu estava receosa e sendo questionada pela equipe: “Tem certeza?”, “Eles vão dar conta?”. Confesso que estava bem insegura, mas os vínculos com a equipe do atendimento na rua e com o casal me levavam adiante.
Durante um período, fiquei sem noticias. Mas, alguns meses depois, eis que surge “André” no serviço para contar as novidades: “Estou trabalhando em um lava-rápido... é provisório até que eu consiga voltar para a construção cívil”. E o tempo foi passando, e notícias animadoras e tranquilizadoras foram chegando. “André” mandou uma foto da família passeando no Parque do Ibirapuera, confessando que era seu sonho. Reatou contato com sua família, mãe, pai surpreendidos pela mudança de “André”. “Maria” amamentando o bebê, cada vez mais lindo.
Como não estavam satisfeitos com o abrigo, conseguiram alugar uma casinha e para lá se mudaram. Trabalhando no lava-rápido, um cliente perguntou a André por que ele não buscava outro serviço. Ele respondeu: “Doutor, estou fazendo de tudo. Comprei até uma fantasia de Homem-Aranha para vender bala na rua depois que saio daqui. Sou pedreiro de profissão”. O homem, então, sacou um cartão do bolso e disse: “Procure-me na segunda-feira”.
Era um empreiteiro com várias obras em andamento. Hoje, “André” está empregado como pedreiro. “Pedro” está com quatro meses e meio, super esperto. E “Maria” está cuidando do bebê, que já tem vaga na creche, e isso permitirá que ela trabalhe como diarista. Permanecem em tratamento no CAPS.
O cadastro no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) foi realizado para o benefício Bolsa Família, que ajudará muito nas despesas. Continuamos acompanhando a trajetória desta família. Isso é muito importante para eles, que se sentem amparados e incentivados a manter a mudança.
A vida segue com mais segurança, dignidade, inclusão e cidadania.
Como vimos, as mudanças são possíveis, é só acreditar. Neste caso, a maternidade não mudou somente a vida de “Maria”, mas a chegada de “Pedro” mudou também o foco e os objetivos de “André”. Tudo isso foi possível com a construção da rede interativa. As ações e reações dessa rede é que permitem a construção de um SUS voltado à integralidade da atenção.
SOBRE A AUTORA:
Laurene Baldichia: Possui ampla experiência em gestão pública e atuação especializada na área psicossocial, com um compromisso sólido com o acolhimento e o atendimento humanizado. Sua trajetória inclui a coordenação de equipes de Serviço Social e Psicologia, além de intervenções psicossociais em contextos hospitalares e na rede de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Relato emocionante que nos dá esperança.