Você já pensou que a formulação de uma política sobre drogas pode desconsiderar o humano e o contexto social das pessoas? Você já pensou que o conceito de determinação social em saúde pode não contemplar a complexidade do campo? Pense nisso junto com Telmo Ronzani no Blog do Coletivo Intercambiantes Brasil. Leia, curta e publique seu comentário!
O tema que trago para reflexão não é novo, tampouco original. Portanto, não tenho a pretensão de lançar nenhum “museu de grandes novidades” e reconheço que outras pessoas já discutiram sobre o tema. Ainda assim, frente ao contexto em que vivemos e aos acontecimentos históricos em relação ao chamado “mundo das drogas”, muitas vezes é importante que se repitam algumas ideias.
Na verdade, escrevo o texto instigado por uma discussão de alto nível feito a partir do texto escrito por Minayo (2021), onde a autora faz uma crítica ao conceito de determinação social em saúde e sua utilização no momento atual e discute que o termo foi transferido de outras ciências para a saúde coletiva, não contemplando a complexidade do campo. Faz ainda uma crítica ao “determinismo” da noção de saúde. Obviamente, o texto gera profundas críticas e respostas de importantes autores da área tais como Naomar Almeida-Filho (2021) e Jamie Breilh (2021), que procuraram fazer um contraponto ao criticado pela autora e apontam alguns equívocos conceituais do texto inicial. Enfim, uma boa dica de leitura de alto nível e debate intelectual que não pretendo esgotar aqui.
De qualquer maneira, para trazer à baila o tema para o “mundo das drogas”, é importante fazer uma localização epistemológica do qual parto. Compreendo que o ser humano é constituído por suas bases biológicas, psicológicas e sociais, mas principalmente atravessado pela história e cultura que dá base à sua existência, de forma dinâmica, processual e dialética. Através da relação entre o que lhe é singular e sócio-histórico é que podemos compreender quem sou eu como nós somos. Dessa forma, seria possível compreender as determinações sociais que nos atravessam em dado tempo, contexto e história.
Voltando agora ao “mundo das drogas” e fazendo um grande recorte histórico à sociedade capitalista, as substâncias psicoativas, em suas diferentes apresentações, têm um importante papel na geopolítica e nas relações que os modos de produção foram se constituindo no mundo. Portanto, o “mundo das drogas” é o nosso próprio mundo, onde o acesso ao consumo e a posse de certas mercadorias demarcam lugares e fronteiras sociais, que criam identidades a serem consumidas/possuídas e compradas. Nesse sentido, temos subjetividades produzidas e vendidas por uma sociabilidade consumível/descartável, como bem apresentado no documentário “1,99. Um supermercado que vende palavras” que faz uma dura crítica à “sociedade de consumo” e ao fetiche da mercadoria que o mundo capitalista construiu.
Nessa armadilha em que somos colocados, onde “eu sou a partir do que consumo/tenho” ou “eu sou dependendo do que consumo/tenho”, somos levados a pensar no consumo como um ato individual, que se aproxima de forma estratégica ao ideal liberal do individualismo, que perversamente tem levado muitos de nós a valorizar o direito do consumidor em detrimento aos direitos humanos. Ou então, procura-se tais direitos como sinônimos indissociáveis, pois eu como indivíduo de direitos, se posso consumir, portanto sou humano. Em outros momentos já tive a oportunidade de ressaltar o equívoco que temos feito ao falar do consumo das drogas a partir do ideário liberal econômico, sem fazer uma crítica e reflexão sobre nosso modelo societário que mantem as injustiças sociais, ainda que tenhamos um discurso progressista (Ronzani, 2018). Mas pensar sobre o consumo de drogas sem considerar a sociedade de consumo e as determinações sociais que atravessam tal comportamento é justamente descartar a complexidade por trás disso.
O Brasil e a Indoafroiberoamérica, apesar de sua riqueza cultural e sabedoria ancestral, a partir da invasão colonial, é marcada por uma grande desigualdade, uma hierarquia social rigidamente controlada e uma massificação cultural/ideológica. É marcada ainda por uma pobreza que tem grande impacto na vida e na saúde de grande parte de sua população. Situação causada por uma organização societária que mantem e protege grandes economias e uma parcela muito pequena da população que acumula riqueza e privilégios. Uma situação que é mantida pela violência nos mais diferentes âmbitos e pela ideologia que massacra, massifica e oprime determinadas populações. Nesse sentido, é impossível pensar que o consumo é um bem universal e que vai incluir as pessoas em seus direitos básicos. A partir da violência institucional e da ideologia, muitas vezes travestidas de políticas públicas, é que se criam códigos objetivos ou subjetivos de comportamento ou de acesso ao consumo. Ou seja, ser consumidor, e seu sentido implícito, dependerá da posição social em relação algumas categorias tais como classe, gênero, raça/etnia, território, dentre outras.
Portanto, o significado de “ser consumidor” ou mesmo de ser produtor ou comercializador de um bem de consumo também será determinado por essa posição social em que ocupamos. Ou seja, não basta consumir, consumo se dá em determinação social que cria códigos de bons ou maus consumos. Por exemplo, muitas vezes as mesmas substâncias, com os mesmos substratos ou propriedades psicofarmacológicas são reprimidas/reprovadas ou incentivadas/aprovadas dependendo de quem, como e onde se consome. Ou seja, o consumo de drogas é atravessado por determinados marcadores sociais. Isso não quer dizer que seja uma posição determinista fatal e estanque, mas que parte de uma análise de contexto fundamental para compreendermos a situação.
Por essa razão, repetindo o que já foi dito, a compreensão do consumo de drogas a partir de uma visão das determinações sociais não é só necessária, mas fundamental no cuidado e na formulação das políticas sobre drogas para não incorrermos ao erro de implementarmos ações universalizantes, que colocam todos em um único modelo, que provavelmente será um modelo de ser humano hegemônico e que desconsidera a historicidade e o contexto social das pessoas.
Obviamente, o objetivo do presente texto não é esgotar o tema, mas levantar uma questão importante para nós que procuramos intercambiar as nossas experiências e nosso ideal de uma sociedade mais justa. Para tal, se procuramos alguma mudança e queremos avançar, é preciso levarmos em conta como a sociedade se conforma e cria maneiras de se organizar e manter estruturada as diferentes relações sociais. Portanto, não há como pensar em drogas, sem compreender a objetividade da organização social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Almeida-Filho, N. Mais além da determinação social: sobredeterminação, sim!. Cadernos de Saúde Pública, 37(12), e00237521. https://doi.org/10.1590/0102-311X00237521.
Breilh, J. (2021). La categoría determinación social como herramienta emancipadora: los pecados de la “experticia”, a propósito del sesgo epistemológico de Minayo. Cadernos de Saúde Pública, 37(12), e00237621. https://doi.org/10.1590/0102-311X00237621
Minayo, M. C. S. (2021). Determinação social, não! Por quê?. Cadernos de Saúde Pública, 37(12), e00010721. https://doi.org/10.1590/0102-311X00010721
Ronzani, T. M. (2018). The Context of Drug Use in the Consumer Society. In T. M. Ronzani (Ed.). Drugs and Social Context: Social Perspectives on the Use of Alcohol and Other Drugs (pp. 77– 88). New York: Springer.
SOBRE O AUTOR:
Telmo Mota Ronzani: Mestre em Psicologia Social e Doutor em Ciências da Saúde, com Pós-Doutorados em Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Professor Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
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